Reportagem: Natasha Pinelli
Fotos: José Felipe Batista/Comunicação Butantan e Comunicação Butantan
Amor, persistência, orgulho, vitória, gratidão. Foram essas as escolhas de cada um dos cinco participantes desta matéria, quando convidados a resumir em uma só palavra o projeto da vacina da dengue do Instituto Butantan. Juntos, os termos ajudam a traçar o percurso de desenvolvimento da Butantan-DV: uma história repleta de desafios, provações, alegrias e conquistas, tal qual uma “Jornada do Herói” – modelo narrativo comum em diversas culturas e consolidado pelo mitólogo Joseph Campbell (1904-1987), em que o protagonista é convocado para uma aventura e supera inúmeras adversidades, até retornar para casa transformado.
Neuza, Vanessa, Claudia, Patrícia e Flávio fazem parte do plano da vacina desde seu início, em 2010. Aqui, eles representam os mais de 50 colaboradores – e protagonistas – que integram a “família dengue”: brasileiros e brasileiras que contribuíram para o desenvolvimento do imunizante tetravalente recém-aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e que, em breve, estará à disposição da população brasileira.

15 anos de convivência: parte da equipe de desenvolvimento da vacina da dengue em reunião (Foto: José Felipe Batista)
“Somos uma pequena amostra de um time em que todos eram muito importantes. Também gostaria de destacar nominalmente o empenho dos coordenadores Gustavo Gonçalves Perrotti, Everton Magno De Sousa, Vivian Massayo Kazyama e Alyne Vieira Barros, que não participaram desse encontro, mas foram essenciais para o desenvolvimento do Insumo Farmacêutico Ativo da vacina dengue”, reforça Neuza.
Foram mais de 10 anos de convivência intensa, compartilhando frascos, células, microscópios, cálculos, planos e planilhas, além de alegrias e perrengues que aconteciam dentro e fora do laboratório. Após cinco anos, e a pedido do Portal do Butantan, o grupo se reuniu novamente no Laboratório Piloto de Vacinas Virais (LVV) para relembrar alguns dos momentos mais inesquecíveis, emocionantes e divertidos dessa incrível jornada.
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A pesquisadora Neuza Frazatti Gallina dedicou-se por mais de uma década ao desenvolvimento da Butantan-DV (Foto: José Felipe Batista/Comunicação Butantan)
Foi na década de 1980 que o Brasil teve suas primeiras epidemias de dengue documentadas, segundo dados do Ministério da Saúde. Os casos foram registrados em Boa Vista, em Roraima, e eram causados pelos sorotipos 1 e 4 do vírus. A partir de então, a doença começou a se espalhar pelo país até superar a inédita barreira de 1 milhão de casos prováveis em 2010. Essa marca ecoou de forma ainda mais intensa a necessidade de se desenvolver um imunizante contra a doença, que até hoje não possui tratamento específico.
Nesse mesmo período, a pesquisadora Neuza Gallina Frazatti já liderava o LVV. Sempre impulsionada pela vontade de inovar, Neuza já havia trabalhado com o desenvolvimento de diferentes vacinas – como as contra a raiva e o rotavírus –, quando foi designada para uma importante tarefa: a pedido do ex-diretor do Instituto e então diretor da Fundação, Isaías Raw (1927-2022), a bióloga iria comandar o desenvolvimento da candidata vacinal contra a dengue do Butantan.
“O professor Isaías disse que tinha certeza de que eu iria conseguir, e eu também não tive dúvidas. Eu e ele interagimos profissionalmente durante muitos anos e até hoje o tenho como um mestre, uma inspiração. Foi o Isaías quem me mostrou que com paciência e competência podemos tudo”, recorda a atual gerente do LVV.

Cerca de 50 profissionais contribuíram com a etapa de desenvolvimento da vacina da dengue (Foto: Comunicação Butantan)
Assim que recebeu a árdua tarefa, a primeira coisa que Neuza fez foi planejar: sentou e rabiscou em muitos papéis as diferentes estratégias possíveis, até chegar àquela que lhe parecia mais promissora. Foram dias e noites pensando na melhor vacina que poderia ser feita e de qual forma ela seria produzida.
Paralelamente a isso, a pesquisadora reuniu um time inicial de 25 pessoas para lhe apoiar nas diferentes esferas do projeto. Claudia Regina Menezes Botelho, atual coordenadora de Desenvolvimento de Processos do LVV, foi uma delas. Ela, que chegou ao laboratório em 2004 como estagiária, foi recrutada logo no começo para trabalhar na formulação da vacina. A etapa foi um dos grandes desafios do desenvolvimento, uma vez que envolvia combinar de forma eficiente os quatro sorotipos do vírus da dengue. Para isso, foram necessárias 17 diferentes receitas de formulação e mais de 50 experimentos.
“Houve um período muito intenso, em que precisávamos chegar no laboratório às 5h da manhã para começar a formulação. Meus amigos brincavam que eu levantava mais cedo que o padeiro! De fato, era puxado, já chegava me sentindo cansada, mas todos os envolvidos sabiam que o esforço era por um bem maior”, pontua Claudia.

Registro de parte da equipe que contribuiu com o desenvolvimento da vacina da dengue no Butantan (Foto: Comunicação Butantan)
Assim como ela, Vanessa Harumi Takinami e Flávio Mannaro Medeiros também iniciaram suas carreiras no LVV em meados da década de 2000. Atual coordenadora do Biobanco, Vanessa foi designada para o preparo de soluções e manutenção de células Vero – substância utilizada para amplificar as cepas do vírus da dengue. Já Flávio, antes acostumado a trabalhar com produção de vírus, foi deslocado para a liofilização, etapa em que a vacina líquida é transformada em pó. Até hoje o biólogo segue trabalhando no processo, agora na planta industrial do Butantan dedicada à fabricação do imunizante em escala.
Patrícia Mourão Fuches era outra que dava seus primeiros passos profissionais quando chegou ao LVV em 2009. Três anos depois, ela foi deslocada para trabalhar no controle de processos do imunizante. Dentre as tantas novidades que ocorreram naquele período, a farmacêutica também viveu o nascimento de seu primeiro filho. Dos primeiros dias de vida até o início da adolescência do menino, hoje com 14 anos, ele compartilhou a atenção da mãe com a vacina da dengue.
Ao longo da jornada da Butantan-DV, por diversas vezes a balança entre vida pessoal e profissional ficou desequilibrada, com o trabalho no laboratório ocupando boa parte do dia, inclusive aos finais de semana e feriados. “Passamos muitas horas da nossa vida aqui. Foi preciso uma boa compreensão dos maridos, das esposas, dos filhos. No meu caso, tudo ficou mais leve quando a minha própria família percebeu que, ao me apoiar, eles também passavam a fazer parte dessa nobre missão”, lembra Neuza. Enquanto no LVV o produto estava em seu período mais intenso, em casa ela era o porto-seguro de seus dois filhos.
“A verdade é que os parentes nos conhecem e sabem o quanto aquilo era importante. Por outro lado, havia uma colaboração da equipe. Sempre que foi preciso, tivemos apoio para nos dedicar totalmente às nossas famílias”, pontua Patrícia.

As colaboradoras do Butantan Vanessa Harumi Takinami e Patrícia Mourão Fuches (Foto: Comunicação Butantan)
Por envolver quatro tipos de vírus, o desenvolvimento da vacina da dengue se mostrou um processo extremamente complexo. Muitas vezes, a equipe chegou a duvidar que o produto daria resultado. Mas como lembra Vanessa, desistir não era uma opção. “Cada derrota era encarada como um recomeço. Uma oportunidade para que, finalmente, tudo desse certo”, completa Claudia.
A cada pequena vitória ou novo perrengue, a equipe responsável pela criação da Butantan-DV estreitava ainda mais os laços e aprofundava seu companheirismo. “Quando alguém parecia arrefecer, sempre tinha um colega para nos acalmar e nos dar a mão para ajudar a se levantar”, afirma a atual coordenadora do Biobanco.
Mas como em toda boa história, nem só de dramas vivia a equipe de desenvolvimento da dengue. Mesmo diante de tamanha responsabilidade, o riso e a diversão sempre encontraram espaço para deixar o dia a dia no laboratório mais leve. Um dos momentos mais memoráveis foi quando Flávio e Claudia acabaram derrubando um garrafão com solução de limpeza minutos antes de deixarem o LVV, na véspera de Natal.
“Fui posicionar o garrafão no chão, mas ele acabou caindo e, literalmente, lavou toda a sala. Eu até falei para a Claudia que ela podia ir embora, porque sabia que ela precisava pegar estrada, mas ela não foi e me ajudou a arrumar tudo”, lembra Flávio. Uma década depois, ele ainda leva a fama de desajeitado, enquanto o causo segue sendo motivo de piada entre a equipe. “Miraram no brinde de Natal, mas acertaram no Ano-Novo”, brinca Vanessa.

Desde o início da jornada, um dos principais desafios da equipe de desenvolvimento da vacina da dengue era a instabilidade das quatro cepas utilizadas na produção do Insumo Farmacêutico Ativo (IFA). Nos testes realizados, a potência viral do produto caía drasticamente com apenas quatro horas na geladeira.
Logo os cientistas entenderam que a liofilização seria a melhor opção para garantir a estabilidade da Butantan-DV. “Foram inúmeras formulações, configuração e testes. Ao término de cada tentativa, todo o time retornava para a bancada para analisar o resultado final. Era bem decepcionante quando a gente olhava e via que a pastilha liofilizada não estava legal. Até que teve um momento que foi!”, destaca Flávio.
Superado o desafio – assim como tantos outros –, finalmente a candidata vacinal do Butantan parecia pronta para ser aplicada nos primeiros recrutados para os ensaios clínicos. Nessa etapa, um estudo com quase 17 mil pessoas foi conduzido para confirmar a eficácia e a segurança do novo produto. Ver os primeiros frascos finalizados, deixando o laboratório do Butantan para começar a servir a população brasileira foi um momento de grande emoção para todos.
Hoje, quem entra no LVV logo se depara com uma foto que registra o primeiro voluntário do estudo a receber a dose única de Butantan-DV. A imagem é uma lembrança constante do exato instante em que a equipe responsável pelo desenvolvimento soube que todo o esforço empregado até ali tinha valido a pena, e da certeza de que a vacina brasileira iria dar certo.

Abraço e trabalho coletivo: aprovação do imunizante pela Anvisa foi a coroação de anos de dedicação (Foto: José Felipe Batista)
Participar de um projeto tão grandioso e com tamanho potencial como o desenvolvimento da vacina da dengue é um marco e um orgulho. É ser diretamente responsável pela fabricação de um produto pequeno, que cabe na palma da mão, mas que carrega o enorme poder de levar esperança para os brasileiros, e acima de tudo, de salvar inúmeras vidas.
“É um orgulho imenso para nós e para toda a sociedade. Mostramos que temos muita capacidade e que a ciência produzida aqui no Brasil é tão boa quanto o que vem de fora. Ninguém no mundo tem a criatividade que nós temos. Espero que a nossa conquista sirva de inspiração para muitos outros”, ressalta Neuza.
Quando questionados sobre o que pretendiam fazer depois do registro da Butantan-DV pela Anvisa, a pesquisadora logo se apressou para responder: “Vamos comemorar, claro! E nos dedicar a fazer uma outra vacina. É a nossa missão!”



