Portal do Butantan

Como é a Ilha das Cobras: enjoo, suor e pesquisa nos bastidores de uma expedição científica do Butantan à Queimada Grande

Para estudar a jararaca-ilhoa, cientistas precisam vencer a mareação, caminhar por trilhas perigosas e superar a exaustão; trabalho em campo é essencial para compreender aspectos biológicos para preservação da serpente


Publicado em: 21/05/2025

Reportagem: Natasha Pinelli
Fotos: Marília Ruberti/Comunicação Butantan


São 6h20 de uma morna manhã de abril quando o sol rompe por completo a linha do horizonte, espraiando-se sobre o mar de Itanhaém, no litoral sul paulista. Em meio ao sobe e desce das ondas que insistem em encrespar as águas do canal da Boca da Barra, uma embarcação desponta no sentido sudoeste. Em seu interior, um marinheiro gira energeticamente o timão a fim de vencer as altas marolas, enquanto uma equipe de dez pessoas do Butantan – composta por pesquisadores e time de apoio – conversa animadamente entre uma chacoalhada e outra, ansiosos pela chegada ao destino final: a Ilha da Queimada Grande. 

Paraíso dos herpetólogos, o local é conhecido popularmente como “Ilha das Cobras”, justamente por ser a segunda ilha do mundo com a maior concentração de serpentes por metro quadrado. Segundo levantamento realizado no final da década de 2000, a ilha de 430 mil metros quadrados abriga cerca de 3 mil exemplares do réptil – o equivalente a 55 serpentes espalhadas em um campo de futebol –, ficando atrás apenas da Ilha de Shedao, na China, que abriga 20 mil serpentes no total.

 

Primeiro exemplar de ilhoa encontrado durante a expedição nos galhos de um arbusto

 

A Queimada Grande é lar da famosa jararaca-ilhoa (Bothrops insularis): uma espécie de jararaca endêmica – ou seja, que não é encontrada em nenhuma outra parte do mundo –, conhecida pela sua coloração amarelada e por passar boa parte do tempo em meio à copa das árvores, enrodilhada e alimentando-se principalmente de aves.

Ilhas da evolução: o que Galápagos e Queimada Grande têm em comum?

Entretanto, conhecer e estudar in loco as particularidades dessa serpente única está longe de ser um agradável passeio na praia. Os desafios são diversos, a começar pela complexidade dos preparativos e os altos custos que envolvem uma expedição científica. Além disso, é preciso considerar o percurso de quase quatro horas, com trechos via terrestre e marítimo – o último, capaz de provocar sintomas intensos de mareação –, e uma jornada exaustiva em campo, que envolve horas de caminhada em terreno íngreme e, na maioria das vezes, sob sol e calor intenso. 

 

Time do Butantan se prepara para o desembarque na Ilha das Cobras

 

Um destino para poucos: os preparativos
Organização começa quatro semanas antes da data estimada de embarque e se estende até a véspera da partida

A expedição realizada pelo Butantan no início de abril à Ilha da Queimada Grande foi encabeçada pelos laboratórios de Ecologia e Evolução (LEEv) e Coleções Zoológicas (LCZ), e teve como objetivo realizar o diagnóstico da população de Bothrops insularis durante o início do outono – período que coincide com o final da época de migração da ave guaracava-de-crista-branca (Elaenia chilensis), uma das presas da jararaca-ilhoa. Os especialistas estavam apreensivos porque na última visita à ilha, realizada cerca de um mês antes, as serpentes estavam debilitadas e não pareciam estar se alimentando. Além disso, não foi ouvido o canto do pássaro migratório, que sai do Chile em direção ao norte entre os meses de fevereiro e março. 

A viagem também serviu para coletar dados e amostras para pesquisas sobre a situação reprodutiva do réptil e estudos que buscam compreender os processos que moldam a diversidade genética e fenotípica (características resultantes da interação entre os genes e o ambiente) dessas serpentes.

Por se tratar de uma área sob gestão do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), apenas pesquisadores com autorização prévia do órgão podem visitar a localidade. “Iniciamos os preparativos cerca de um mês antes da viagem para lidar com os trâmites da licença. No paralelo, tocamos as negociações com os barqueiros locais que fazem o transporte até a ilha”, explica a bióloga e tecnologista do LEEv Karina Kasperoviczus, líder da expedição. 

O barqueiro, inclusive, é quem bate o martelo em relação à data da viagem, sempre levando em consideração as predições do clima e da maré – é por isso que até três dias antes da previsão de embarque, tudo pode mudar. 

Na véspera da partida, a equipe seleciona e organiza todo o material necessário para a condução do trabalho em campo: luvas, perneiras, ganchos, pinças, álcool, formol, fita métrica, saco para pesar, caixa de contenção, planilhas e cadernos para anotações são itens obrigatórios, além de muita água para a hidratação de todos. Em caso de expedições mais longas – os pesquisadores chegam a ficar até uma semana na ilha –, também é preciso levar barracas, sacos de dormir, alimentos e itens para cozinhar. 

“As mochilas vão cheias de frutas, lanches e chocolates. Ter um doce sempre à mão é essencial para recuperar o gás quando a nossa energia teima em acabar”, brinca Karina. De acordo com a bióloga, uma expedição do tipo “bate-e-volta”, como a feita em abril, tem custo médio de R$ 5 mil, enquanto viagens mais longas podem superar a cifra dos R$ 20 mil.

 

A Ilha da Queimada grande desponta ao horizonte

 

Perrengue científico: a travessia pelo mar
Cinco horas antes da chegada da equipe à Ilha da Queimada Grande

O dia começa cedo na data da partida: às 4h15, a van do Butantan responsável por levar a equipe até a Marina Maitá, em Itanhaém, cruza os limites do Parque da Ciência e vai ganhando as ruas vazias de São Paulo, enquanto a cidade ainda se prepara para acordar. Às 6h, todos já estão a bordo do Comandante Paschoal, uma embarcação estilo lancha de porte médio.

O trajeto de barco leva, em média, duas (difíceis) horas – a depender das condições do clima e da maré – para percorrer os cerca de 35 quilômetros que separam a Ilha da Queimada Grande da costa de Itanhaém. Naquela manhã de abril, mesmo com o diagnóstico de que o mar estava “ótimo”, os efeitos da mareação se tornaram insuportáveis para boa parte dos passageiros, com novatos e veteranos revezando-se à grade da proa para aliviar os efeitos do enjoo. 

 

Equipe inicia a caminhada na trilha que leva ao topo da ilha

 

Conforme a lancha se aproxima de seu destino e os contornos da Ilha da Queimada Grande tornam-se mais definidos, rasgando o céu com enseadas rochosas, morros esverdeados e revoadas de atobás, outro momento de tensão se anuncia: o desembarque em terra firme. Para fazê-lo em segurança, é preciso migrar para um pequeno bote, que a cada viagem leva quatro pessoas o mais próximo possível da costa. A descida exige concentração e precisão: uma passada larga e firme para não se desequilibrar e cair no mar, e nem escorregar na pedra lisa como sabão.

Vencida essa etapa, é hora de iniciar a jornada morro acima. Antes, a equipe realiza uma pausa para ajustar as perneiras (equipamento de proteção individual que cobre a parte inferior das pernas e ajuda a proteger contra possíveis picadas de animais peçonhentos), e passar camadas generosas de protetor solar – ainda pela manhã, o sol já dá indícios de que deve maltratar ao longo do dia. 

 

Exemplar de jararaca-ilhoa repousando sobre uma folha de antúrio

 

O grande encontro: as primeiras serpentes da expedição
Com apenas duas horas em terra firme, equipe encontra dois exemplares da espécie endêmica

A caminhada inicia oficialmente às 9h17 por uma trilha que passa por uma vegetação aberta, com plantas e arbustos que crescem até a altura da cintura. Já nos primeiros passos, é possível sentir no ar um misto de entusiasmo e tensão. Conforme a subida se torna mais íngreme, a trilha adentra a floresta e a mata fica mais fechada. “Mas o que eu estou fazendo aqui de novo?”, alguns se perguntam, em voz alta. Entretanto, bastam 14 minutos para que qualquer tipo de arrependimento se dissipe: às 9h31, a equipe se depara com o primeiro exemplar de B. insularis, enrodilhado em meio a um arbusto. 

Com a ajuda do chamado “pinção”, o biólogo e pesquisador associado do Laboratório de Coleções Zoológicas do Instituto Butantan Fausto Erritto Barbo realiza a captura da serpente. Posteriormente, com o auxílio de um gancho e técnicas de manejo, ela é colocada em um tubo de contenção – essa é parte mais complexa da captura – e passa por uma avaliação completa. Após uma primeira inspeção visual e tátil, os especialistas constatam que o animal está hidratado e saudável. Em seguida, é feita a medição: o espécime mede cerca de 70 centímetros. Também é coletado um fragmento de escama que contribuirá com trabalhos de mapeamento genético, assim como uma amostra da região cloacal para verificar se há ou não presença de sêmen – o objetivo é analisar a biologia reprodutiva dos machos e a qualidade dos espermatozoides.

 

Especialista realizam uma avaliação completa dos espécimes

 

Depois de algumas discussões, biólogos e veterinários chegam ao consenso de que se trata de um macho e descobrem que o exemplar é uma “recaptura” – ou seja, já foi coletado, avaliado e microchipado no passado. “Isso é importante para comparação de dados. Vamos entender o quanto essa serpente cresceu, seu estado de saúde prévio e o quanto ela se locomoveu dentro da ilha”, explica Karina. Por fim, o animal é colocado em um saco de contenção para ser pesado – ele tem 115 gramas – e, na sequência, é liberado na natureza com todo cuidado e segurança.

De volta à trilha, são necessários apenas cinco metros de caminhada para a equipe topar com o segundo exemplar de jararaca-ilhoa do dia. Localizado entre os galhos de uma árvore, a cerca de dois metros do chão, sua posição chama atenção, uma vez que parece estar fazendo um engodo caudal: prática em que as serpentes deixam parte da cauda à mostra, movimentando-a como uma “larva”, a fim de atrair uma possível presa. Apesar de ser uma estratégia adotada principalmente por filhotes de jararaca, adultos de ilhoa já foram observados fazendo o mesmo. Ao analisar com cuidado, porém, os especialistas descartaram a hipótese: a cauda estava distante da cabeça da serpente, o que dificultaria a captura de uma presa.

Quando o exemplar capturado é uma fêmea, entra em cena outro exame: um ultrassom, que ajuda a verificar o desenvolvimento dos folículos vitelogênicos, cruciais para a fertilidade e reprodução do animal. A segunda jararaca-ilhoa passa pelas mesmas avaliações da serpente anterior, e tem também uma amostra de seu veneno extraída. A substância será liofilizada em laboratório e servirá para estudos sobre a evolução das toxinas que compõem o veneno. 

Um carrapato preso entre as escamas da fêmea também é coletado. Karina explica que a presença desses pequenos artrópodes funciona como um “termômetro” sobre a condição geral de saúde do animal. “Quando uma serpente não está muito bem, é comum apresentar uma infestação de carrapatos”, conta. Os carrapatos capturados durante a expedição serão entregues a um pesquisador parceiro da Universidade de São Paulo (USP), que vai avaliar a espécie e seu possível potencial para a transmissão de doenças. 

 

A Ilha da Queimada Grande tem vistas - e abismos - de tirar o fôlego

 

Um suspiro de alívio: serpentes de barriga cheia
Horas finais na ilha são decisivas para o sucesso da expedição

Após a liberação da segunda jararaca-ilhoa encontrada, os colaboradores e pesquisadores do Butantan seguem a jornada morro acima. Com o sol a pino no céu, a caminhada torna-se ainda mais dura e o ritmo diminui. De vez em quando, em meio à vegetação fechada, clareiras se abrem como janelas, convidando a uma bem-vinda e rápida pausa para recuperar o fôlego e contemplar o grande mar azulado. O caminho segue estreito, com um abismo de dar frio na barriga sempre margeando à esquerda da trilha.

Por volta das 11h, a equipe chega a um dos principais pontos culminantes da Ilha da Queimada Grande, onde localiza-se o farol construído pela Marinha do Brasil no final do século XIX. Inicialmente mantida por faroleiros, a estrutura foi automatizada na década de 1920, eliminando a necessidade de residentes na ilha. Apesar da exaustão e do calor, não há tempo para descanso. Os integrantes da expedição vão se alimentando enquanto caminham, tentando não perder o ritmo. 

A pressa de continuar em frente tem motivo: a equipe de especialistas segue bastante preocupada, pois ainda não identificou o canto da Elaenia chilensis e nem encontrou espécimes que, de fato, pareçam estar alimentadas. Vale ressaltar que a jararaca da ilha se alimenta apenas duas vezes ao ano: em março, com a migração da guaracava-de-crista-branca; e entre junho e outubro, com a chegada do sabiá-una (Turdus flavipes) – por se tratar de uma ave maior, os cientistas acreditam que os machos não sejam capazes de predar essa última espécie. Até hoje, também nunca foi registrada uma B. insularis alimentando-se de um pássaro residente: a hipótese é que ambas coevoluíram, e que as aves nativas tenham aprendido a “fugir” da serpente endêmica; dessa forma, restaram apenas as “desavisadas”, como as migratórias, no cardápio das ilhoas.

 

Pesquisadores realizam a microchipagem de espécime de B. insularis capturado na ilha

 

Cerca de uma hora depois, às 12h12, durante a captura da quarta jararaca-ilhoa, os pesquisadores, enfim, respiram aliviados. Achada à espreita no solo, uma fêmea está, literalmente, de barriga cheia: em seu estômago estão duas aves recém-predadas. A forma dos pássaros pode ser adivinhada pelo tato e é confirmada com o exame de ultrassom. O espécime também garante a coleta da primeira amostra de fezes da expedição, que vai contribuir com estudos sobre a alimentação e para pesquisas futuras do Laboratório de Coleções Zoológicas sobre a biota microbiana da B. insularis. Como é uma serpente nunca antes capturada, ela recebe o implante de um pequeno microchip com o registro de dados importantes, como sexo, tamanho, peso, data e ponto da ilha onde foi encontrada. 

Nas duas horas seguintes, outras quatro ilhoas são avistadas, sendo duas delas devidamente avaliadas e registradas pela equipe do Butantan. Por volta das 14h30, quase 1,5 quilômetro distante do começo da trilha e sob um forte calor, com a temperatura na casa dos 30°C, a equipe, já bastante exausta, decide descer e voltar ao ponto inicial, onde o barqueiro aguarda para o retorno à terra firme.

 

Pesquisadores e equipe de apoio do Butantan que participaram da expedição à Ilha da Queimada Grande

 

Momentos finais na ilha: a hora de voltar para casa
Viagem de volta ainda tem percurso de duas horas de barco e mais duas horas de automóvel até o Instituto Butantan

Por conta do ciclo da maré, a recomendação é iniciar o trajeto de volta da ilha, no máximo, até as 16h. Passado este horário, são altas as chances da maré baixar e o barco ficar atolado no canal que leva à marina. Além disso, havia previsão de chuva para o final do período da tarde, o que poderia deixar tudo ainda mais emocionante – há casos de pesquisadores que tiveram que pernoitar na Queimada Grande, mesmo sem estar devidamente preparados, por conta de mudanças no tempo e nas águas do mar.

É hora, então, de comer aqueles chocolates estratégicos para repor um pouco da energia e garantir que todos estão com os joelhos em dia – afinal, se para subir nenhum santo ajuda, descer também não é tarefa das mais fáceis. Nos metros finais da trilha, uma última e inesperada coleta: a carcaça de um possível exemplar de Elaenia chilensis – hipótese que foi confirmada dias depois por um ornitólogo parceiro do Laboratório de Ecologia e Evolução.  

Reunidos no rochedo onde desembarcaram pela manhã, pesquisadores e colaboradores não escondem o sorriso no rosto e comentam sobre o saldo positivo de mais uma expedição à Ilha da Queimada Grande. “Nas quase sete horas em que passamos na ilha, avistamos oito Bothrops insularis. É uma ótima média: mais de uma serpente por hora. Verificamos que a população de serpentes está saudável e que elas estão se alimentando, o que confirma a migração da Elaenia chilensis. Percebemos também que os espécimes encontrados são jovens, o que aponta que as jararacas da ilha estão conseguindo se manter e se reproduzir, algo a se comemorar”, conclui Karina. 

Com a sensação de dever cumprido, é hora da equipe do Butantan voltar para casa. Mas antes dos pesquisadores e colaboradores enfrentarem outras duas (difíceis) horas em alto-mar – com aquele pacote completo que só a mareação oferece – tudo termina em um refrescante e renovador banho de água salgada.


* Agradecimento especial aos integrantes da expedição, realizada no dia 1º de abril de 2025: Paulo Nico Monteiro, diretor do Laboratório de Ecologia e Evolução; Inácio de Loiola Meirelles Junqueira de Azevedo, pesquisador do Laboratório de Toxinologia Aplicada; Karina Kasperoviczus, tecnologista no Laboratório de Ecologia e Evolução; Vivian Trevine, tecnologista no Laboratório de Coleções Zoológicas; Lygia dos Santos Amorim, doutoranda no Laboratório de Ecologia e Evolução; Letícia Contiero Sena, mestranda do Laboratório de Ecologia e Evolução; e Fausto Erritto Barbo, biólogo e pesquisador associado do Laboratório de Coleções Zoológicas do Instituto Butantan.


** Também contribuíram com esta matéria o especialista de laboratório e curador da Coleção Herpetológica do Butantan, Felipe Grazziotin, e a tecnologista no Laboratório de Coleções Zoológicas Vivian Trevine.