Reportagem: Guilherme Castro
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Urubus e abutres têm características físicas semelhantes e desempenham o mesmo papel ecológico: são aves necrófagas, ou seja, se alimentam de organismos em decomposição. Apesar das semelhanças, entretanto, esses animais pertencem a ordens e famílias taxonômicas totalmente diferentes, e o fato de terem fisionomia e hábitos parecidos não é resultado da genética herdada de um ancestral comum direto. Na verdade, isso ocorre devido a um processo chamado convergência evolutiva ou evolução convergente, fenômeno que resulta na semelhança de estruturas em espécies distintas, embora essas estruturas tenham evoluído independentemente em cada espécie por pressões seletivas similares.
Para entender a convergência evolutiva, antes de tudo, é preciso entender como funciona a evolução em si. A teoria da evolução das espécies por seleção natural, desenvolvida pelo naturalista britânico Charles Darwin (e, paralelamente, por Alfred Russel Wallace, outro naturalista britânico) no século XIX, sugere que os animais com as características que melhor respondem às necessidades do ambiente em que vivem são aqueles que conseguem sobreviver e gerar descendentes. Ou seja, não é o animal mais forte que consegue prevalecer, mas o mais bem adaptado ao espaço onde vive.
No livro “Evolução: o sentido da biologia”, os professores do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), Diogo Meyer e do Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Charbel Niño El-Hani explicam que a evolução não acontece de modo linear, mas é um processo de divergência evolutiva a partir de ancestrais comuns. Isso significa dizer que todos os animais possuem um ancestral comum, do qual divergem com o passar do tempo e as diferenças vão se acumulando durante uma longa trajetória evolutiva, de modo que esse acúmulo de diferenças pode gerar novas espécies - isso explica a grande variedade de espécies que existe hoje.
A semelhança física entre espécies ocorre devido a um processo chamado convergência evolutiva ou evolução convergente
“Quando ocorre um acúmulo importante de divergências entre populações de uma espécie ao longo do tempo, pode chegar um momento em que os indivíduos das populações podem se separar e, por exemplo, não se cruzarem mais (conceito biológico de espécie), resultando no surgimento de duas espécies (processo denominado cladogênese). Isso pode ocorrer quando as populações originais passam a ocupar ambientes distintos ou são separadas por uma barreira geográfica, tornando difícil o fluxo gênico entre elas. A partir disso, ao longo do tempo, vão se acumulando diferenças genéticas, morfológicas e de comportamento”, explica a pesquisadora científica do Laboratório de Ecologia e Evolução do Instituto Butantan Maria José de J. Silva.
Por outro lado, pode acontecer de duas espécies que não têm relações filogenéticas próximas (ou seja, cujo parentesco é distante) apresentarem similaridade de traços morfológicos, fisiológicos ou comportamentais – supostamente “contrariando a lógica” da divergência evolutiva. Nestes casos, os elementos comuns são resultado de adaptações que ocorreram independentemente, devido à seleção natural em um certo tipo de ambiente, e que, coincidentemente, resultaram em duas espécies parecidas ao longo do tempo. É a isso que a ciência dá o nome de convergência evolutiva.
Exemplos de convergência evolutiva
Um exemplo que ilustra o fenômeno é o surgimento da visão em animais vertebrados e em cefalópodes (polvos, lulas e outros moluscos). Os olhos de ambos têm estruturas fotossensíveis básicas similares: funcionam como uma câmara escura que capta a luz, cujo sinal é encaminhado ao sistema nervoso. “A função é a mesma, mas as células que captam a luminosidade são diferentes. O processamento também é distinto. A estrutura evoluiu independentemente nesses dois grupos que são distantes filogeneticamente”, destaca Maria José.
Um exemplo de convergência evolutiva é o surgimento da visão em animais vertebrados e em cefalópodes (polvos, lulas e outros moluscos)
Como a visão é uma importante ferramenta para colher informações e entender o ambiente, a estrutura evoluiu independentemente nos dois grupos de animais, que conseguiram gerar descendentes - por coincidência, esse mecanismo era semelhante entre vertebrados e cefalópodes (tomadas as devidas ressalvas, dada a complexidade dos sistemas).
Outro exemplo são as cecílias ou cobras-cegas, que, apesar do nome, não são serpentes. Na verdade, esses dois tipos de animais sequer fazem parte da mesma classe: as serpentes são répteis, enquanto as cobras-cegas são anfíbios. As similaridades entre eles, como corpo alongado, sem patas, e a cabeça como agente das atividades vitais (interação com o ambiente, defesa e alimentação), são resultado de um processo evolutivo convergente, que fez com que tanto serpentes quanto cecílias perdessem os membros e se adaptassem ao substrato terrestre.
Entre as diferentes espécies de serpentes também houve convergência evolutiva. Um estudo publicado na revista Ecology Letters e conduzido por pesquisadores da Universidade de Wollongong e da Universidade Nacional Australiana, ambas da Austrália, explica porque as jiboias (do gênero Boa), encontradas principalmente na América Central e do Sul, e as pítons, que vivem na Ásia e na África, possuem fenótipos parecidos. Embora apresentem características semelhantes, como traços morfológicos e a habilidade de constrição das presas, as pítons e as boas não possuem ancestrais comuns próximos – o mais próximo data de 70 milhões de anos atrás.
Ao analisar dados sobre o formato da cabeça de 1.073 indivíduos, representando 80% das espécies dos dois grupos, os cientistas identificaram que as semelhanças fenotípicas entre as boas e as pítons resultam de pressões seletivas similares, em decorrência de nichos ecológicos equivalentes (relações ecológicas, modos de reprodução, estratégias de sobrevivência etc.).
Outro exemplo são as cecílias ou cobras-cegas, que sequer fazem parte da mesma classe, mas têm corpo alongado, ausência de patas, e a cabeça como agente das atividades vitais
Os cinco pares de espécies estudados pelos autores que exibem convergência evolutiva são Morelia viridis e Corallus caninus; Simalia kinghorni e Chilabothrus angulifer, Antaresia childreni e Epicrates maurus; Liasis mackloti e Eunectes murinus; Aspidites ramsayi e Lichanura trivirgatta, embora existam outros exemplos de convergência adaptativa em serpentes, como o que acontece entre Acantophis antarticus (elapídeo) e viperídeos; Uromacer oxyrhynchus, Oxybelis fulgidus e Ahetula nasuta, etc.
Os corpos de tubarões e golfinhos também possuem características que surgiram independentemente, como resultado da seleção natural: “Eles partilham o mesmo hábitat e se deslocam por meio da natação, que é auxiliada por barbatanas e corpo hidrodinâmico. Contudo, os animais não possuem o mesmo ancestral próximo, pertencem a classes diferentes e, portanto, as estruturas empregadas para a natação têm origens embrionárias distintas”, explica Maria José.
Características análogas e homólogas
As características resultantes de convergência evolutiva são chamadas de análogas ou homoplasias (palavra de origem grega que pode ser traduzida para “moldado da mesma maneira”). Os organismos que as exibem não precisam, necessariamente, ser muito parecidos entre si, desde que exerçam um mesmo tipo de comportamento ou vivam em um ambiente com nicho ecológico similar.
Os corpos de tubarões e golfinhos possuem características que surgiram independentemente, como resultado da seleção natural
Morcegos e pássaros servem como parâmetro: ainda que não sejam tão parecidos morfologicamente, ambos possuem asas, ou seja, há características análogas entre eles. Ainda que as asas desses animais possuam origens evolutivas distintas, desempenham a mesma função – voar.
Já as estruturas homólogas são o oposto das análogas, e dizem respeito a características compartilhadas por um grupo de espécies, herdadas de um ancestral comum a elas. Os tetrápodes, superclasse de vertebrados, são um exemplo: esses animais evoluíram diretamente de ancestrais pisciformes, cujas nadadeiras articuladas (ou lobadas) passaram por modificações, resultando na evolução dos membros relacionados à locomoção, e, há cerca de 395 milhões de anos, dominaram o meio terrestre. O processo evolutivo ocorreu desde então e várias novas espécies de animais com quatro membros, como muitos cavalos, sapos, lagartos, aves, etc., foram originadas a partir desses ancestrais.