Reportagem: Natasha Pinelli
Fotos: Renato Rodrigues/Comunicação Butantan e Casa da Photo/Shutterstock
Reconhecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma doença tropical negligenciada, os acidentes com serpentes peçonhentas continuam sendo um importante desafio de saúde pública no Brasil. Segundo o Painel Epidemiológico do Ministério da Saúde, em 2024 foram 31.735 notificações e 127 mortes em decorrência do problema no país.
Os dados mostram que os trabalhadores rurais estão entre os mais atingidos e que a região Norte concentra as maiores taxas de ocorrência. A população indígena, embora represente menos de 1% dos brasileiros, aparece proporcionalmente mais exposta. Além disso, os atrasos no atendimento médico continuam sendo um dos principais fatores que aumentam o risco de complicações e de óbito.
Brasil registrou mais de 30 mil casos de acidentes com serpentes peçonhentas em 2024; picadas por jararaca são as mais comuns (Foto: Comunicação Butantan)
A análise do perfil dos acidentados em 2024 mostra que os homens representaram 76% das vítimas, enquanto as mulheres corresponderam a 24%. Já a faixa etária mais atingida foi entre 20 e 49 anos, grupo em idade produtiva.
Dados sobre o território onde os acidentes ofídicos ocorreram indicam uma possível relação do problema com o trabalho desempenhado no campo: 75% das notificações aconteceram em áreas rurais, contra apenas 20% em zonas urbanas. Também corrobora a hipótese o fato de que 18% das notificações ocorreram em contexto laboral, ainda que muitas vezes em ambiente informal – o número pode ser ainda maior, já que quase 13% das fichas não apresentavam a informação.
O local da picada no corpo também ajuda a compor o cenário, uma vez que picadas em pés e pernas correspondem a mais de 60% dos casos. Tal indicador evidencia a possível exposição dos trabalhadores rurais, frequentemente em áreas de roçado ou agricultura de subsistência, em beira de rios, mata fechada e florestas. Em muitos casos, a falta de uso de equipamentos de proteção individual aumenta ainda mais a vulnerabilidade do grupo.
Trabalhadores rurais são as principais vítimas dos acidentes ofídicos (Foto: Casa da Photo/Shutterstock)
Em 2024, a região Norte registrou a maior incidência de acidentes ofídicos, com um total de 9.400 casos e 50,35 atingidos por 100 mil habitantes – o coeficiente representa quase o triplo da média nacional, de 14,86. Considerando os números absolutos, o estado do Pará lidera o ranking com mais de 5 mil vítimas, seguido por Minas Gerais (3.357) e Bahia (3.089).
Outro aspecto relevante diz respeito ao perfil dos acidentados: 61% se autodeclararam pardos, 22% brancos, 8% pretos, 4% indígenas e 1% amarelos.
No caso dos indígenas, embora o percentual de acidentes pareça pequeno em um primeiro momento, o dado ganha peso quando comparado à participação na sociedade: de acordo com o último Censo do IBGE, eles representam menos de 1% da população total do país.
Múltiplos fatores ajudam a explicar a vulnerabilidade do grupo, visto que diversas comunidades indígenas estão localizadas em áreas rurais, florestais e ribeirinhas, sobretudo na região Norte, onde o contato com serpentes, inclusive peçonhentas, é naturalmente mais frequente.
A isso se somam as barreiras logísticas no acesso à saúde: em muitos casos, para chegar a um hospital com estrutura adequada, o paciente precisa enfrentar longas horas de deslocamento fluvial ou rodoviário. Dependendo da época do ano, a via aérea pode representar o único meio para um indivíduo em sua comunidade ou área indígena alcançar um serviço de saúde. Essa demora no atendimento aumenta o risco de complicações e pode ser decisiva para o agravamento do quadro.
O Instituto Butantan é responsável pela fabricação de cinco antivenenos utilizados no tratamento dos agravos por picada de serpente (Foto: Renato Rodrigues/Comunicação Butantan)
Outro ponto de destaque é o tratamento com antivenenos, reconhecido como a única alternativa terapêutica específica para o envenenamento ofídico. Em 2024, quase 80% dos pacientes receberam algum tipo de soro. Desse total, mais da metade recebeu o soro antibotrópico, utilizado para combater os efeitos da picada de serpentes do gênero Bothrops, como jararaca, jararacuçu, urutu e surucucu.
O Painel Epidemiológico mostra que 56% dos acidentes foram classificados como leves, 30% como moderados e 7% como graves. Entre as complicações mais frequentes estão infecção secundária, insuficiência renal, necrose e, em situações extremas, amputações.
Os números também mostram que o tempo decorrido entre o momento da picada e o atendimento médico é fator determinante: quando o socorro acontece até três horas após o acidente, a taxa de letalidade é de 0,29; porém, se a demora supera 12 horas, o coeficiente salta para 1,13.
Em relação ao número de óbitos, o Centro-Oeste registrou o maior índice de letalidade em decorrência do ofidismo. Enquanto a média nacional foi de 0,40%, a região apresentou uma taxa de 0,76%, quase o dobro da taxa geral.
Celebrada em 19 de setembro, a data busca ampliar a visibilidade para os riscos e impactos das picadas de serpentes em diferentes populações do mundo. Nesse cenário, a OMS tem como meta reduzir em 50% as mortes e incapacidades decorrentes dos envenenamentos até 2030.
No Brasil, o Instituto Butantan tem papel central no enfrentamento do problema, como principal produtor nacional de soros hiperimunes. Em 2024, foram entregues ao Ministério da Saúde mais de 420 mil frascos de antivenenos para o tratamento de agravos em decorrência das mordeduras.
O Butantan produz cinco soros antiofídicos: o antibotrópico, para envenenamento por serpente do gênero Bothrops (jararaca, jararacuçu, urutu, surucucu, comboia); o antibotrópico e antilaquético, para acidentes com serpentes do gênero Bothrops (jararaca) ou Lachesis (surucucu-pico-de-jaca); o anticrotálico, para casos de picadas por serpente do gênero Crotalus (cascavel); o antibotrópico e anticrotálico, para envenenamento por serpentes do gênero Bothrops (jararaca) ou Crotalus (cascavel); e o antielapídico para picadas de serpente do gênero Micrurus (coral verdadeira).
Essa matéria contou com a colaboração e a validação da diretora técnica de produção de soros do Butantan, Fan Hui Wen.