Reportagem: Natasha Pinelli
Imagens: Renato Rordigues/Comunicação Butantan
Desde os tempos de sua fundação, no início do século XX, até os dias de hoje, o Instituto Butantan é um reconhecido polo de recepção de serpentes. Muitos desses animais que chegam à instituição – seja por doação de terceiros, seja por intermédio de instituições
municipais, estaduais ou federais, como o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) – são encaminhados ao Laboratório de Herpetologia. No caso das fêmeas, algumas novatas podem esconder uma grata surpresa: embriões em suas barrigas.
Visto que, ao atingirem a maturidade, os bichos nascidos no setor podem colaborar tanto com as rotinas de extração de veneno para a produção de soro antiofídico, como no desenvolvimento de pesquisas sobre toxinas, as serpentes gestantes recebem tratamento especial assim que são descobertas prenhes. “Mesmo estando aqui há quase três décadas, é sempre uma emoção quando isso acontece”, relata a pesquisadora científica do Laboratório de Herpetologia do Butantan Kathleen Fernandes Grego.
Kathleen Fernandes e Fabiola de Souza durante a realização de ultrassom em uma das serpentes do laboratório
Teste de gravidez
Se é durante os dias mais amenos de outono e inverno que as serpentes preferem acasalar, a chegada das altas temperaturas anuncia a temporada de nascimento dos filhotes. É por isso que, durante o período, os protocolos de recepção do laboratório são reforçados e todas as fêmeas admitidas são submetidas a um exame de ultrassom.
“Verificamos a presença de um botão embrionário ou bolsa gestacional. E mesmo que nada disso apareça em um primeiro momento, a serpente pode seguir em avaliação caso seus folículos estejam bonitos e bem desenvolvidos”, explica Kathleen. Os folículos de uma serpente são como “ovos em desenvolvimento” no ovário da fêmea. É lá onde também está o óvulo, que, se fertilizado, se desenvolverá em um embrião e, eventualmente, em um filhote.
Na primavera de 2024, a equipe da Herpetologia confirmou a gravidez de cinco fêmeas que haviam chegado ao plantel provenientes da natureza: uma jararaca-pintada (Bothrops neuwiedi) de Ouro Fino (MG), com dez embriões; duas cascavéis (Crotalus durissus), uma também de Ouro Fino (MG) e outra de Pinhalzinho (SP), cada uma com seis filhotes; e duas urutu-da-serra (Bothrops fonsecai), ambas de Campos do Jordão (SP), estando uma com dez e outra com 11 embriões – a gravidez dessa última espécie foi, inclusive, bastante comemorada pela equipe. “São espécimes raros de chegar até nós e de extrema importância para a consolidação de pesquisas sobre as propriedades de seu veneno, assim como do ponto de vista de conservação”, explica a bióloga e tecnologista de laboratório Fabiola de Souza Rodrigues, uma das responsáveis pela triagem dos animais.
Exame de ultrassom é conduzido em água morna para ajudar que o aparelho deslize pelas escamas da serpente
As cinco fêmeas chegaram ao Butantan pela Recepção de Animais, setor responsável por receber doações de serpentes, aranhas, escorpiões e outros bichos de interesse médico. Além de realizar a identificação da espécie, a área também faz um registro de todos os doadores. A jararaca-pintada e a cascavel de Ouro Fino (MG), por exemplo, foram entregues pelo Departamento Municipal Autônomo de Águas e Esgoto da cidade, enquanto as outras três serpentes foram encontradas e enviadas voluntariamente por munícipes das regiões – em um primeiro momento, as urutu-da-serra (Bothrops fonsecai) foram encaminhadas pela Recepção de Animais ao Laboratório de Coleções Zoológicas do Butantan e, posteriormente, direcionadas ao Laboratório de Herpetologia.
Por uma questão de segurança sanitária, os indivíduos coletados, infelizmente, não podem retornar à natureza, fora do ambiente em que foram recolhidos, pois podem estar doentes ou até mesmo infectados por algum tipo de parasita ou vírus – o que poderia comprometer a saúde da população silvestre local. Diante disso, permanecem no Laboratório de Herpetologia, onde contribuem com projetos que buscam compreender aspectos do desenvolvimento da morfologia e das toxinas de seus venenos.
A luz baixa no ambiente permite uma melhor visualização do exame de ultrassom
Pré-natal das serpentes
No Laboratório de Herpetologia, todas as serpentes que estiverem sob suspeita ou com gravidez atestada, imediatamente entram em regime de licença-maternidade. Isso significa que elas vão deixar de participar do processo de extração de veneno e serão manipuladas o mínimo possível, a fim de reduzir qualquer possibilidade de estresse.
Outro cuidado é a manutenção dos protocolos de alimentação. Diferentemente do que acontece na natureza, quando as fêmeas prenhes tendem a enfrentar longos períodos sem comida para não se expor a nenhum risco de predação, as gestantes do Butantan continuam sendo alimentadas mensalmente. Assim como as mulheres grávidas, a rotina de exames das serpentes inclui coletas de sangue e ultrassons periódicos para acompanhar o desenvolvimento dos “bebês” e as condições gerais das futuras mamães.
Durante toda a gravidez, cerca de sete ultrassonografias são realizadas – aproximadamente, uma por mês de gestação. Da cópula ao nascimento, se passam, em média 8 meses; porém, os cientistas não sabem precisar o tempo gestacional das serpentes, pois ainda não foi confirmado o momento exato em que a fecundação dos óvulos acontece – há relatos de fêmeas que mantiveram “estoques” de espermatozoides em seu organismo por quatro anos, até, enfim, “liberar” a fertilização.
Coleta de sangue vai ajudar a definir parâmetros que acontecem em diferentes momentos da gestação
Os exames de imagem acontecem em um ambiente de luz baixa e são conduzidos por quatro especialistas do Laboratório de Herpetologia: um tecnologista encarregado de realizar a contenção dos animais – neste caso, a tarefa ficou a cargo de Fabíola; a pesquisadora Kathleen Fernandes Grego, responsável pelas medições e avaliações, feitas em parceria com a médica veterinária Luciana Carla Rameh; e o aluno de iniciação científica Bruno Araújo Sampaio, incumbido do preenchimento das fichas com o histórico dos animais.
Para facilitar que o aparelho deslize pelas escamas da fêmea, a avaliação é feita com parte do corpo da serpente mergulhado em água morna. O primeiro passo é encontrar a posição da vesícula biliar, já que o sistema reprodutivo do animal localiza-se logo abaixo desse órgão. Em seguida, os especialistas medem o depósito de gordura: ao longo da gestação, essa reserva energética será transformada em vitelo – uma substância rica em nutrientes que vai fornecer o alimento necessário para o desenvolvimento do embrião.
Fabiola comemora a descoberta de mais uma serpente grávida no plantel do Laboratório de Herpetologia
Na sequência, os profissionais observam o estágio de cada um dos folículos das serpentes, assim como a possível presença de embriões. “Observamos o batimento cardíaco e o desenvolvimento da coluna vertebral de cada um dos filhotes. Também realizamos a medição do ovo e dos bebês, com o intuito de compreender se o crescimento está adequado”, explica Luciana Carla Rameh.
Sob o olhar atento das colegas, Bruno é o responsável por coletar amostras de sangue por meio de uma punção na veia caudal do animal. O objetivo é que a análise dos materiais contribua para a definição de parâmetros que ajudem a caracterizar os diferentes estágios de gestação da serpente. “Sabemos que por conta da formação dos folículos e do próprio desenvolvimento dos filhotes, as fêmeas podem apresentar uma maior concentração de cálcio e colesterol no organismo”, pontua Luciana. Os achados da pesquisa integram o trabalho de iniciação científica de Bruno, que foi orientado pela médica veterinária.
Fabiola, Kathleen, Luciana e Bruno: equipe é responsável por acompanhar parte dos pré-natais que acontecem no Laboratório de Herpetologia
O momento do parto
Além de acompanhar o desenvolvimento dos filhotes, os protocolos de cuidados e as rotinas de ultrassonografias permitem à equipe prever a data aproximada do parto e se preparar da melhor forma possível para a chegada dos futuros moradores do laboratório. “Na maioria das vezes, as fêmeas entram em trabalho de parto durante a madrugada e o tempo até o nascimento depende da quantidade de filhotes que cada uma carrega”, pontua Kathleen. O número de indivíduos vai depender da espécie, podendo variar de cinco a 70. A pesquisadora também explica que o primeiro desafio dos recém-nascidos é romper a placenta na qual nascem envoltos para, enfim, conseguir respirar.
Tanto as jararacas quanto as cascavéis não desempenham nenhum tipo de cuidado parental. Nos primeiros 15 dias de vida, os filhotes tendem a ficar mais quietos, pois nascem com uma reserva de vitelo na barriga e não sentem necessidade de se alimentar. Passado esse período, os bebês serpentes já estão “prontos para o mundo”, inclusive com potencial de envenenamento. Porém, na Herpetologia, os novatos permanecem em um berçário até os 3 anos de idade, quando, enfim, atingem a “maturidade” e passam a contribuir com as rotinas de extração de veneno.